Estarreceu-me a recente decisão do Conselho Federal de Medicina, ao manifestar-se favoravelmente às hipóteses
de ampliação para autorização do aborto, através da criação de novas hipóteses
de exclusão da ilicitude no anteprojeto de Código Penal, isto por duas razões
básicas: 1º) porque a decisão parte exatamente daqueles cujo dever ético é a
preservação da vida e da saúde humanas, o que revela uma contradição insanável;
2º) porque contraria os princípios mais comezinhos de bioética, ignorando a
existência de alternativas mais razoáveis às práticas abortivas, estas extremamente
danosas também para a saúde biopsicossocial das próprias gestantes que a elas
se submetam.
O aborto, seja clandestino ou
oficializado pelo Estado, é uma prática arriscada, deixa sequelas físicas e
psíquicas e afeta para sempre a vida das mulheres que o praticam, ainda que se
aleguem razões de qualquer ordem para fazê-lo. Médicos, psicólogos e profissionais
da saúde sabem disso. Nenhuma mulher mentalmente sã pratica o aborto por mero
capricho. Entretanto, numa sociedade que mercantiliza a vida e sobre ela exerce
as mais terríveis formas de eugenia, tirania esteticista e biopoder, acabará
sempre por se tornar uma saída pragmática, utilitarista e, por óbvio,
irresponsável.
Não há justificativa razoável que
autorize praticar o aborto até a 12ª semana de gestação, nem mesmo na primeira
semana ou no primeiro dia. O Código Penal autoriza, atualmente, apenas duas
hipóteses de aborto legal (casos de risco de vida à gestante ou gravidez resultante de
estupro), tendo a jurisprudência acrescentado uma terceira (a “antecipação
terapêutica de parto” do feto anencéfalo, ao qual deveríamos chamar, a rigor, feto
mesocéfalo). Ampliar ainda mais as hipóteses de autorização, além de flexibilizar demais o descarte da vida humana, deixa de avaliar que muito poderia ser feito para evitar o mal maior: a perda de vidas
humanas inocentes.
Para a bioética, há três
princípios que devem reger a conduta daqueles que lidam com a vida e a saúde
das pessoas: o princípio da beneficência ou da não maleficência, o princípio da
autonomia e o princípio da justiça. Ao agirem, os profissionais da área de
saúde, até mesmo em face do juramento hipocrático a que estão submetidos, não
poderiam valer-se de qualquer destes princípios bioéticos para, desprezando os outros, suprimir a vida.
Não se pode, sob o pálido
argumento de valorizar a autonomia volitiva da gestante e mesmo em nome de uma
absolutização de seus direitos reprodutivos e sexuais, os quais induvidosamente
também devem ser reconhecidos e respeitados, destruir a vida do nascituro, cujo
direito à vida há de ser resguardado em sua integridade. Se agirem de modo
inverso, os profissionais da área médica estarão diante de dois males
igualmente graves: a morte do nascituro e danos irreversíveis à saúde das
mulheres gestantes.
Os direitos sexuais e
reprodutivos, também reconhecidos como direitos humanos, devem ser exercidos
com responsabilidade pelos seus titulares e cabe ao Estado propiciar às pessoas
condições para fazê-lo. Já há evidências de que os melhores métodos
contraceptivos são ganhos econômicos, sociais, culturais, educacionais etc. E
não se venha com o argumento ridículo, surpreendentemente já utilizado de modo
cínico por autoridades públicas na área da saúde, de que o aborto é um problema
de saúde pública apenas para justificar a matança de vidas humanas inocentes,
pois se é um problema de saúde pública, somente políticas públicas de saúde
(sobretudo preventivas) poderiam inibir esta indesejável e nada saudável prática. Adotada a
visão contrária apenas por amor ao debate, seguindo a linha argumentativa dos abortistas de plantão,poderíamos, por redução ao
absurdo, propor também a ampliação das hipóteses de uso das drogas
ilícitas e até fornecê-las em hospitais e clínicas públicas, para evitar que muitos
dependentes morram nas bocas de fumo e pontos de venda de droga, vítimas da
guerra do tráfico ilegal de entorpecentes. Por evidente, esta tese seria
insustentável, porque a primeira preocupação do Estado deve ser com a vida e a
saúde das pessoas (de todas elas, não importando o gênero, a idade ou a
condição) mas, em especial, daquelas mais vulneráveis, dependentes de cuidados alheios.
Sustento que a solução mais
adequada, em cada caso, seria aquela que garantisse a vida, a saúde e a integridade
psíquica da mãe e do nascituro indefeso, propiciando a máxima eficácia dos
direitos fundamentais envolvidos, tanto daqueles cuja titular é a mulher quanto de outros, de titularidade do nascituro. Para muitas
situações, pelo menos no caso de gravidez indesejada, o parto anônimo
acompanhado de atendimento e acompanhamento ginecológico e psicológico à mãe, garantidos
pelo Estado, além de encaminhamento imediato da criança para adoção legal, resolveria
dois problemas (a enorme lista de espera de candidatos a pais adotantes e a maternidade indesejada de muitas mulheres).
Assim, dois problemas sociais poderiam ser resolvidos sem precisar criar um
terceiro (a morte dos nascituros), cujas consequências são irreversíveis,
inclusive para aquelas gestantes.
Acontece, porém, que a solução
proposta (parto anônimo com integral acompanhamento médico e psicológico a
gestante), exigiria do Estado o cumprimento das promessas contidas na
Constituição, garantindo a todos o direito à vida, à educação e à saúde, o que
teria de mobilizar somas consideráveis de orçamento público sem que fique alegando,
como sói acontecer, a malfadada tese da “reserva do possível”. E este é o
caminho que as nossas elites cruéis não querem trilhar, sendo mais fácil para
elas assassinar indefesas vidas humanas, instrumentalizadas no mercado da vida
e da morte em que se converteram algumas das práticas médicas, orientadas pela
força do capital, que prefere patrocinar o genocídio ou investir na
fábrica de cópias de narcisos em clínicas de reprodução assistida. Tais instituições, malgrado todos os avanços do Direito Positivo, ainda vivem num limbo
jurídico, entre a anomia e a eugenia liberal.
Prefiro continuar sonhando com uma
sociedade justa, humana e solidária, na qual as pessoas (homens e mulheres),
alimentadas e educadas, exerçam com responsabilidade seus direitos sexuais e
reprodutivos, sua maternidade e sua paternidade, recebendo dos profissionais da
saúde aquilo que eles prometeram quando fizeram seu juramento e, do Estado, o
cumprimento das promessas constitucionais, através da concretização de
políticas públicas capazes de garantir a igualdade de gêneros, sem apelar para
soluções fáceis e inconsequentes, ainda mais sob o falacioso argumento de estar
defendendo os direitos humanos, como se estes não se caracterizassem pela indivisibilidade
e universalidade. Acho o momento oportuno para que a sociedade mobilize esforços em defesa da vida, exigindo dos governos a adoção de medidas para efetivá-lo e não para suprimi-lo ou restringi-lo.
(Texto de autoria do Prof. Flávio Gonçalves, coordenador docente do G-TEIA, em 25/03/2013)
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